Rosas, Prostitutas, Santas e Princesas: Expressões da Feminilidade
Imagem: A Bela e a Fera de Anne Anderson
A Rosa é a flor mais presente nos Contos de Fada, seja como figura de fundo ou como elemento essencial à história. Podemos encontrar a Rosa em contos como “As Fadas (Sapos e Diamantes)”, “A Bela e a Fera”, “A Bela Adormecida no Bosque”, “Rapunzel”, “A Pequena Polegarzinha” e muitos outros. Em geral, nos contos em que a Rosa aparece a protagonista é uma jovem mulher, uma donzela prestes a ser “descoberta” pelo olhar/desejo masculino. A moça em questão é, quase sempre, cheia de potencialidades das quais ela mesma não tem consciência. É o encontro com o outro – com o Masculino – que a faz perceber o seu valor como mulher. Em todos esses contos a beleza, a sedução, a paixão e o encantamento são o mote da estória.
Para entendermos o porque disso – o porque de a Rosa estar associada a esse despertar consciente para o potencial feminino de seduzir e encantar –, precisamos retomar o significado simbólico da Rosa na cultura ocidental. Durante a Idade Média os estudos alquímicos associavam a Rosa ao órgão sexual feminino. Diversos registros poéticos, literários, folclóricos e artísticos da época oferecem essa analogia, sendo que essa aponta para as características físicas da flor, podendo-se destacar o tom encarnado da Rosa vermelha, que é a mais comum. Interessante lembrarmos que a cor vermelha é, historicamente e simbolicamente, associada ao feminino em função da relação entre o sangue e as funções características do corpo da mulher: a menstruação e o parto. Outras características utilizadas simbolicamente para aproximar a Rosa e o órgão sexual feminino seriam: a textura aveludada/macia e a carnosidade de suas pétalas; a afinidade dessa flor com as estações mais quentes e terras úmidas; seu perfume intenso e marcante e, finalmente, pelo seu formato de pétalas arredondas que se fecham formando um núcleo secreto, escuro e molhado. Coincidentemente, a associação entre o botão de Rosa e o segredo permeou todo o Imaginário medieval. Um costume comum era o de colocar uma Rosa no teto das salas de reunião, indicando que os assuntos deveriam ser mantidos em segredo. Desse hábito, origina-se o costume arquitetônico de sancas e tetos adornados com motivos rosáceos.
Um aspecto interessante dessa associação entre o feminino e a Rosa é que essa flor sempre esteve associada às Deusas do amor e da fertilidade e, em especial, à figura de Vênus/Afrodite, a Deusa protetora das Hetairas. As Hetairas formavam uma interessante classe social na antiga Grécia, elas eram cultas, versadas em política, filosofia e artes, além de serem treinadas para usufruírem da sedução e do sexo livremente. Eram mulheres escolhidas por sua beleza e talentos, que eram cultivados e lapidados constantemente. Entre os conhecimentos dominados pelas Hetairas estava a elaboração de perfumes, cosméticos, óleos, poções amorosas e afrodisíacos – termo derivado de Afrodite –, que eram utilizados em suas atividades como “sacerdotisas” do amor. Acredita-se que esse tipo de sacerdócio feminino ligado à Prostituição Sagrada, ou equivalente, tenha sido recorrente na antigüidade. Podemos encontrar referências à prostituição sagrada que remetem a Suméria, a Índia, ao Egito e a outras civilizações do passado remoto.
Essa forma de prostituição não se adequar ao sentido que hoje damos a palavra. Em verdade, essas Prostitutas Sagradas eram educadas para serem “veículos” mortais da alegria e do êxtase divinos das divindades Femininas e, especialmente, estavam ligadas à iniciação dos homens nos mistérios das Deusas do Amor. O papel da prostituta sagrada era, portanto, servir de veículo para o poder de uma divindade feminina – esse é o equivalente mítico da figura do Rei como veículo de “aporte” para o poder das divindades solares. Essa ligação das divindades femininas com a sexualidade – e a sua vivência como parcela fundamental da vida -, pode ser encontrado em Deusas como Bast ou Hator no Egito, Inanna na Suméria, Ishtar na Babilônia, Afrodite na Grécia, Vênus em Roma, e Freya na Escandinávia.
A prostituta sagrada também era vista como inspiração para a virilidade masculina. Do ponto de vista psicológico, essa sacerdotisa do amor exerceria o papel de Ânima, ou imagem da alma, que desperta o homem fazendo com que ele descubra sua potência e sua capacidade de amar e ter prazer. Simbolicamente, ao tornar-se a personificação do objeto divino de desejo e uma fonte de prazer, a prostituta sagrada servia como uma espécie de “gerador” de força vital e criadora dos homens. Aqui, vale ressaltar dois aspectos: o primeiro é esse caráter gerador e criador associado à figura feminina que, de certa forma, está na raiz do uso místico da Rosa como símbolo espiritual da vida, da sabedoria e da criação. O segundo diz respeito à figura feminina como Ânima, que está na raiz das figuras de princesas dos contos de fada e das estórias de aventura e fantasia: da Pequena Sereia à Princesa Léia de Guerra nas Estrelas.
Em “A Bela e a Fera“, por exemplo, a Rosa é elemento de destaque, como também o é em “A Bela Adormecida” e em “Rapunzel” . Nessas estórias as heroínas “resgatam” seus amados da inércia e da imobilidade de um mundo ordenado e triste. Em “A Bela Adormecida” um Príncipe indolente, atraído pelo amor, enfrenta uma terra inóspita e devastada pelo tempo, mergulhada no silêncio e na escuridão, se embrenha na floresta desconhecida, luta contra o dragão e encara a muralha de rosas e espinhos venenosos que protege o leito da princesa a ser despertada. Em “A Bela e a Fera” é o amor da mais bela que traz de volta o príncipe aprisionado no corpo monstruoso da Fera, enclausurada num castelo lúgubre e triste que se enche de luz e melodia ao entrar em contato com a força transformadora da Bela, num jardim florido de Rosas. Em “Rapunzel” os espinhos das roseiras que protegem a torre – na qual a moça está aprisionada – cegam o príncipe quando ele é atirado da janela pela bruxa, forçando a jovem a lutar contra o aprisionamento e a sair para o mundo em busca do seu amor perdido, restaurando-lhe a visão e o sentido da vida.
As princesas dos contos de fadas não são moças belas e prendadas por um simples capricho de uma cultura machista, como querem muitos detratores da fantasia. Dotadas de encanto anormal, sobrehumano, as princesas dos Contos de Fada são a personificação de uma parte essencial do poder feminino presente nas imagens arquetípicas das deusas do amor. Tais deusas são ligadas à vaidade, ao cuidado do próprio corpo e à exacerbação dos sentidos. Em última instância, elas falam de auto-estima e amor próprio, falam de amar a si mesmo antes de servir de veículo para a alegria e o êxtase do outro. É por essa razão que as prostitutas sagradas se entregavam aos cuidados laboriosos do corpo, à manipulação de cosméticos e fragrâncias, ao exercício da arte e do conhecimento. Ou seja, elas dedicavam grande parte de suas vidas a se tornarem pessoas mais belas e mais sábias. Imagens que até hoje associamos à alma humana: beleza e sabedoria!
Essas diferentes representações do poder arquetípico do feminino – que é o poder da Ânima – encontradas nos contos de fadas, nos falam também do poder simbólico da Rosa. Vimos que historicamente a Rosa está indelevelmente associada à sexualidade, possuindo um significado místico como ponto de contato entre os homens e o divino feminino. Assim, a Rosa foi atravessando os séculos, ocupando no nosso imaginário o lugar de símbolo da feminilidade. Inúmeros são os mitos sobre a Rosa, e o significado do amor associado à essa flor pode ser tanto espiritual quanto carnal, virginal ou sexual. Tanto é que a Rosa, uma flor consagrada a muitas deusas da mitologia pagã, foi também adotada pelo cristianismo como o símbolo de Maria. As rosáceas das catedrais góticas foram dedicadas à Maria como emblema do feminino em oposição à cruz, emblema cristão do masculino. Os rosários originais eram feitos com pétalas de rosa. A palavra “rosário” deriva do latim “rosarium” que significa roseiral.
Ainda, sobre os mitos que envolvem a Rosa e sua ligação com o feminino: no antigo Egito consagrava-se a Rosa a Ísis, deusa associada à maternidade e ao casamento que era retratada com uma coroa dessas flores. Para os romanos as rosas eram uma criação da suave Flora, deusa da primavera e das flores. Quando uma das ninfas da deusa morreu, Flora a transformou em flor e pediu ajuda aos outros deuses. Apolo deu a vida, Bacus o néctar, Pomona o fruto; as abelhas sentiram-se atraídas pela flor, e quando Cupido atirou suas flechas para espantá-las se transformaram em espinhos e, assim, segundo o mito, foi criada a Rosa. Na tradição Hindu a deusa do amor Lakshmi nasceu de uma Rosa. Para os indianos a Rosa é o símbolo da beleza e da pureza, perfeição em todos os sentidos. Mais, conta certa versão da Mitologia Grega que quando a luz desfez o caos e os deuses passaram a governar o mundo, as divindades concederam à Terra suas graças brotadas sob formas vegetais, recobrindo de florestas e jardins os vales e as montanhas e depositando no fundo do mar variada flora. Cada deus e cada deusa escolheu para sua proteção, de acordo com sua preferência, Árvores, Flores, Ervas e Frutos. Afrodite escolheu para si as flores e os frutos mais perfumados e de cores mais vivas, concedeu-lhes perfumes extasiantes e sabores adocicados. As plantas de Afrodite produzem secreção agradável ao paladar, são ricas em óleos vegetais e aromas intensos – porque é do agrado da deusa os prazeres da mesa e o preparo de cosméticos para o embelezamento do corpo.
Durante séculos os povos do Mediterrâneo renderam honras a Afrodite usando suas dádivas vegetais na culinária, na magia e na cosmética. Essa prática ritualística de associar à propriedade dos vegetais os atributos dos deuses desapareceu nos primeiros séculos da Idade média, mas foram os monges medievais que ressuscitaram a Arte do uso da Rosa, por exemplo, na culinária. Posteriormente, as mulheres enclausuradas nos conventos aprimoraram as receitas de doces, geléias, cremes, pétalas confeitadas e licores perfumados pela graça dessa flor. Ao mesmo tempo a Europa medieval sofria a influência dos invasores Árabes na península ibérica, o que ajudou a difundir a utilização da Rosa na culinária e na cosmética. Os Árabes são hábeis na utilização da Rosa, seja como óleo essencial ou aromatizador de doces.
Hildegard von Bigen, a freira alemã que era música e filósofa e viveu no século XII da era medieval, foi também uma grande herbalista. Sua obra inclui inúmeras receitas de uso medicinal das plantas. Para Hildegard a Rosa possuiria a capacidade de equilibrar a energia dispersada e conturbada pela raiva, a irritação e os sentimentos belicosos. Entre as suas receitas encontra-se a de um pó feito de pétalas de rosas que deveria ser utilizado para acalmar e tranqüilizar pessoas coléricas. É válido retomarmos aqui a idéia de que Afrodite foi a única mulher a acalmar a cólera de Ares, o deus da guerra. Coincidência ou não, a fórmula de Hildegard é imbuída de significados arquetípicos. Além disso, vale ressaltar o caráter “iluminador” da Rosa – que vimos anteriormente representado pela Ânima nos Contos de Fada -, capaz de levar os homens a ter contato com o poder feminino adormecido no inconsciente masculino, que desperta e alimenta o desejo e a capacidade de se entregar e comprometer-se com as próprias emoções e as dos outros.
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